quarta-feira, 5 de março de 2014

Bençãos de 4 patas


      Havia um casal de Beagles muito amistosos que iam a uma clinica veterinária onde trabalhei como assistente de veterinária -  a Norah e o Vascão, cujos donos tinham sem dúvida a simpatia dos seus amigos de 4 patas. A cadela teve uma ninhada de 8 beagle puppies. Quando os vi na 1ª toma de vacina, a meio de Julho, vinham num cesto grande de piquenique na parte de trás duma pick-up de caixa aberta com a sua "dona". Assim que a cesta foi pousada no chão da clinica era o inferno à solta HAHAHA. Todos corriam, ladravam, davam beijinhos , cheiravam tudo; todos menos uma. Ficou sentada, queixo para cima a tentar à distância cheirar o contexto. Aproximou-se e, ao contrário dos "irmãozinhos", deu-me uma só lambidela na mão, voltou para trás e ficou a olhar. Eu disse logo: "Esta vai dar trabalho. Prova inteligência ao pensar antes de agir, mas também coragem porque não deixa de explorar".

     A 31 de Julho de 2009 a minha amiga e então colega  e patroa na clínica, fez-me uma surpresa... e uma partida.
     Depois de dada a segunda dose da vacina aos cachorrinhos, todos estavam na cesta e de volta à carrinha, menos a tal "teimosa". A criadora pega nela e passa-a para as minhas mãos, a cadelita ficou hirta e tensa, parecia que estava a segurar um boneco empalhado. "Parabéns adiantados"- disse a senhora.
Eu só arregalei os olhos olhei para ela, olhei para a fita cor de laranja que nem tinha antes notado que estava no pescoço da cadela precisamente como se fora uma prenda.

     "Obrigado, mas eu não posso- retorqui, já tratei de muitos cães, fiz pet-sitting, ajudei a cuidar de cães de  amigos e colegas de casa, trabalho aqui, mas nunca tive um cão mesmo. Nem a minha senhoria ia deixar". A veterinária chefe interrompe: "Deixa, deixa. Eu já falei com ela, não só sabe de tudo como está contentíssima". Eu nem queria acreditar, "busted", mesmo. "Mas nem tenho casinha para ela ficar quando vier trabalhar, nem comida, cama, brinquedos. Isto vai ser uma despesa incrível."

    Ela abriu um armário grande onde estava uma saca de ração puppy que  uma revendedora que simpatizava comigo ao saber disto ofereceu; tinha 15Kg de ração, simplesmente dado. Abriu a dispensa e estava lá uma caixa grande, tipo 1metro de altura por 1 e meio de comprimento, era a prenda da minha "chefinha", um parque para cachorrinhos- aquilo é caro demais. Eu nem tive reacção, muio menos palavras, eu só gaguejava por surpresa e um pouco de receio. A voluntária que nos estava a apoiar nesse dia, traz um saco de plástico que tinha trazido- e que eu notara mas não dera importância- tinha brinquedos para cão que foram oferta das voluntárias e de duas clientes da clínica.
     Enfim, uma conspiração muito bem preparada e com muita gente envolvida de todos os lados- e que sinceramente nunca desconfiei.

     "Está a ver, agora tem de aceitar"- disse a criadora a rir. "Ela nem sequer gosta de mim, nunca dá beijinhos, está sempre receosa"- tentei me defender; olhei para aqueles olhinhos manipuladores ladeados dum par de orelhas que parecia ridiculamente querido de tão grandes que eram. A "desgraçada" começa a lamber o meu nariz e mão como se eu estivesse coberto de comida. Ainda assim mostrei cara de forte e mau, "Eu lá posso ter um cão...E se ela não gostar de mim?"- ai que figurinha que eu estava a fazer :P
     A criadora propos por a cadela no chão, a criadora ficava numa ponta a chamar por ela e eu a distancia igual mas sem chamar. A cadela veio a correr para mim e sentou-se ao meu colo. Ela tinha me escolhido. Sou sincero- sob risco de quem lê isto rir ou me achar patético- comecei a chorar. Porque 31 de Julho é um dia mau para mim desde os 13 anos- é a data em que a minha Mãe faleceu e lido bem com isso hoje em dia, mas não nesse dia do ano.  Também, admito, porque fiquei sinceramente comovido pelo empenho destes que não me eram assim tão próximos, excepto a minha senhoria que antes de o ser já era, e é, uma boa e querida amiga.

      Assim que chegamos a casa, WEEEEE acorda com as pilhas todas. Foi assim durante cerca de 2 semanas, 2 a 3 horas de hiper actividade seguidas de 2 a 3 horas de sono. Ainda por cima ela nunca queria dormir, mais que uma vez eu a vê-la a literalmente tropeçar de sono e ela por teimosia mordia-se para ficar acordada ou então começava a andar de olhos fechados no corredor encostada à parede mas sem parar para nao dormir. Resultado, adormecia no corredor, no chão, debaixo da mesa, atrás do sofá, dentro do bidet, em basicamente todo o lugar menos na cama.

     Porque sou um tótó e estava cheio de medos e pena dela vir duma ninhada de 8 , não a quis deixar dormir sozinha. Deitei-a numa almofada ao lado da minha e rodeei a cama com dois endredons dobrados- se caisse ao tentar sair da cama, não se aleijava. Na primeira noite, meio a dormir, ela começa a morder-me a orelha; digo morder mas era nitidamente amamentar mas como nao tinha a mamã agarrou-se à minha orelha. E eu deixei porque pelo menos estava sossegada- ia ganhando um piercing.

     Para adormecer e ficar a dormir mais tempo, tentei cantar para ela- tipo, embalar. Sim, eu sei, muito parvo e tolinho. Mas funcionou e só assim conseguia dormir pelo menos 4 ou 5 horas. A primeira vez cantei já nem sei o que- foram so cerca de 5 musicas calmas; lembro de cantar "Leaozinho" do Caetano Veloso porque a minha Mãe me cantava isso. Cantei já nem sei o quê de Zeca Afonso e cantei "Somewhere over the rainbow". No dia seguinte, porque percebi que ela adormecia logo e dormia profundamente com isso, tentei cantar so duas e ao perceber qual a musica favorita dela, passei só a cantar essa e também encontrei um nome. A canção de embalar favorita era "SOmewhere Over the Rainbow" e o nome foi e ficou Judy. Quem me conhece não pode evitar ver a coincidência e piada cósmica disso.

     Nestes 4 anos e meio esta minha amiga tem sido um apoio, companhia, diversão, obriga-me a andar mais, rir mais, constantemente ler e aprender brincadeiras, aprender a fazer biscoitos e snacks para cães e muito honestamente, tornou-se numa verdadeira Amiga. Claro que houve e há "set backs"; já roeu base duma mesa de cabeceira, arrancou a parte de trás duma outra, roeu parte dum colchão (meu, o dela está impecavel, claro), aprendeu a abrir gavetas (que não teem puxador) e descobriu que gosta de pintar as paredes, cama e roupa com graxa liquida, assaltou a dispensa e roubou bolachas, entrou (duas vezes) no quarto de colegas de casa e a uma roubou croquetes num pires a outra uma sandes mista inteira (ia morrendo de vergonha, valha-me ter colegas de casa muuuuito compreensivos), rasgou-me muitas meias e continua a usar a cama dela só para tipo férias ou quando está de castigo por alguma tropelia. Nunca lhe bati- ensinei a não ladrar, parar de destruir, sentar, não estragar coisas da casa, etc sempre pela lógica do "desprezo".
     Cada vez que fazia/faz (hoje em dia é raro) alguma partida mesmo má, olho nos olhos, falo com ela (acho que só quem vive com animais de estimação me entende), digo que estou desapontado, tiro todos os brinquedos, não deixo ir para a minha cama, não falo nem olho para ela directamente ate o dia seguinte e nesse dia só come cerca de 30minutos depois de me ver a comer- assim vincando a escala hierarquica. Não me empenho a treinar a Judy como animal de circo- não esperem uma cadela que senta, rebola e dá a pata (a nao ser que tenham comida ou falem com voz mais grave- o que evito e guardo para momentos chave); mas no que é importante obedece , no que é importante para ela e a sua segurança e não para o meu ego. Pára nas passadeiras quando atravessamos, não estica muito a trela, se disser "menos" ela percebe que não é o mesmo que "Não" e faz o que estava a fazer mas mais calma , nunca ladra nem uiva em casa, não suja nada e até posso (e já fiz) colocar uma comida qualquer no chão e dizer "É meu, não é teu" e ela nao mexe- é para ganhar auto-disciplina e funciona. Claro que tenta manipular, fica ali parada a olhar, vem dar "beijinhos" - graxista, mas a verdade é que só se eu disser a palavra chave ela vai e pega.

     Agradeço aos meus amigos do trabalho, à minha grande Amiga, e acima de tudo e todos agradeço a Deus (as vezes penso se a minha Mãe meteu uma cunha no Outro Lado) por me ter honrado com esta confiança, carinho puro, por me dar razoes para rir todos os dias- por pior que tenha sido o dia, por mais doente, despenteado ou "down" que eu esteja.
     Não ponho a Judy acima dos seres humanos nem projecto nela expectativas humanas- isso não é saudavel para os humanos nem justos para os animais de estimação. Mas sinceramente não a vejo como posse, adereço ou incómodo (passea-la não é para as necessidades é tambem para cheirar, explorar, encontrar pessoas e outros cães, brincar, e com isso eu me distrair e fazer exercicio; é uma "win win situation").

     Esta é a história da minha Amiga e colega de casa, a Judy, que todos os dias me faz acordar bem disposto, nota e é gentil quando estou em baixo, brinca muito, obrigou-me a sair e conviver numa fase em que estive menos bem e agora... bem agora está a roncar na sua sesta pós almoço (obviamente na minha/nossa cama, corpo debaixo de endredon e cabeça na almofada como se fosse gente).

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