sábado, 22 de março de 2014

NATUREZA: DONOS OU MORDOMOS?

O dicionário define "mordomia" como capacidade de administração- seja de uma casa, de uma familia, dum grupo, causa ou entidade.Escolho esta palavra porque creio ser a mais correcta parao contexto. 

Nos textos base das religiões abraâmicas (israelismo/judaismo, cristianismo e islamismo), assim como nos Vedas, no Epico de Gilgamesh, nos escritos egípcios, no Popol Vuh dos maias, na tradição oral da maioria da Àfrica sub-saariana, dos nativos americanos, dos aborígenes da Austrália à miríade de ilhas dos povos do Pacífico- todos falam da Criação da Vida com o mesmo assombro, maravilha, beleza e poder imenso. Uns realçam o caos absoluto a comparar com a ordem que viria, outros apresentam a forma de geração espontanea ou creacionismo base, outros uma forma não convencional de creacionismo assumindo que as forças divinas não fizeram aparecer algo do nada mas - como a terceira palavra de Gênesis em aramaico, berosheit, indica, que o que estava separado e sem propósito foi organizado, reordenado e outorgado destino, propósito e força motora ou cinética inerente. Uns argumentam sobre a inteligência ou alma do planeta em si enquanto entidade viva independente dos que a populam, uns indagam-se sobre até onde vai a consciencia das plantas e animais sobre a sua propria existencia e se isso implicaria que todas as criaturas vivas possuem em si nao apenas centelha de vida mas alma.

De onde quer que sejamos, qualquer que seja a nossa crença,  para qualquer ponto que olhemos da historia, do tempo ou espaço nesta pequena esfera a que chamamos de Terra, de casa, nisto concordamos, é, por agora, a única morada comum que temos. Uns mais que outros poderão debatar o papel que temos enquanto humanos face a tamanho  ecossistema, esta torrente de força vital que permite que haja vida desde o pico das montanhas ao profundo mar, nas temperaturas mais gélidas às fumarolas dos vulcões submarinos, nas planicies solarengas aos subterrâneos selados que não veem a luz do dia há milhares de anos.

Que papel tem o Humano ante tal? Na teologia abraâmica, mais que em qualquer outra, há uma notória presunção de posse sobranceira, de que tudo o que nos rodeia nos foi dado para dominar, nomear, apropriar e fazer como nos aprouvem. Creio que não é esta noção independente do facto de se trararem de religiões patriarcais, todas sem excepção com noções claras de territorialidade, impeto bélico e uma necessidade visceral de buscar e persuadir todos a serem aglutinados por sua doutrina sob pena de serem vistos como párias, imerecedores de graça divina e por consequencia ultima, anulados da Criação.
Isto chocou deveras os nativos das Américas ao ver o despeito e materialismo com que a terra e suas criaturas eram vistas e tratadas pelos colonos. O mesmo com as tribos africanas, os aborigenes australianos, etc.
Mas esta presunção de posse, de antropo-centrismo deveria chocar os proprios povos judaicos, cristãos e islamitas.  terra, os mares e rios, as "bestas do campo", os peixes e varias criaturas do mar, as florestas, ervas, flores e toda a forma mineral, vegetal e animal- seguindo a lógica de Gênesis, precede-nos. Na verdade, consultando a historia vemos que a noção de os humanos virem depois de tudo o mais da Criação é de comum interpretação a volta do globo inteiro com excepções infimas. 
Porque então seriamos os senhores e mestres do que nos precede?
Bem, em Gênesis  (escrito por Moisés- relembro que de acordo com crença os 5 primeiros livros são da autoria de Moisés depois deste ter sido educado nos preceitos e religião do Egipto e de ter saido do mesmo para o deserto por onde vagueou por 40 anos) no primeiro capitulo, versiculo 28 está escrita a ordem do humano ser frutifero, multipilicar-se, encher a terra e sobre ela ter dominio e subjugar todas as criaturas que nela se encontram.

Serei só eu a ter um problema com as palavras dominar e subjugar todas as criaturas? Pouco depois é dado o conselho a Eva- e através dela a todas as mulheres que viessem à Terra, de sujeitar-se ao homem, servi-lo, inclinar sobre ele todos os seus desejos e ser pelo homem dominada.

Ou seja, os 3 primeiros capitulos dão ao homem, ao humano masculino, a autorização e de facto a ordem de dominar, nomear, subjugar e dispor como quiser das mulheres, da terra, mar e ares e de tudo o que os povoa. 
Não posso concordar com isto e não entendo isto como um preceito digno nem oriundo de entidades iluminadas ou divinas. Eu, na minha insignificância, ignorância e inconsequenciabilidade atrevo-me a ver nestas palavras - sem equivalente em qualquer outra cultura não abraâmica, outro significado. Não dominância, não subjugação, mas mordomia e colaboração; não sobre mas com, nao acima mas olhos nos olhos- seja com a mulher ou com a Criação como um todo.

Acredito na existência duma entidade- seja um, uma, muitos- inteligente, eficiente, com lógica suficiente para agir com frieza quando o bem maior se impõe, compassivo que baste para ver, entender e discernir as intenções das acções. Uma entidade, chamemos-lhe Deus por mera simplificação, que tenha ou não interferido no processo evolutivo do Cosmos e em particular do planeta Terra, a querer intervir na história dos humanos, a querer buscar seu avanço , não poderia por pura lógica assumi-los como superiores e ignorar que fisicamente somos inferiores e menos bem equipados para adversidades climatericas, predatorias e ate epidemológicas que uma mera bacteria.

O que nos distingue? A consciencia de nossa propria existencia, a  capacidade de argumentar e estruturar pensamentos complexos e precepcionar conceitos abastractos como a existencia, o tempo, espaço, etc? Não sera concerteza inteligência ou capacidade de fazer instrumentos por si- os chimpanzés batem os cocos na pedra para os abrir e comer, as aguias largam as tartarugas de grande altura para que ao cair rache a carapaça e assim possam comer a carne  la dentro, as plantas crescem com inclinação para o sol nascente, o musgo cresce a norte na europa porque aqui o vento frio e propicio a multiplicaçao dos esporos vem precisamente de norte-nordeste- tudo isto é inteligência, instrumentalização e adaptação.

Seja o que for que nos distingue no olhar de Deus- se algo há de todo, seria, para mim, algo a ver com um equilibrio delicado de emoções e intelecto. Ora a que emoções apelamos ao pregar de dominar e subjugar metade da raça humana inteira (as mulheres) e toda a criatura vivente sob um grupo de seres que calharam de nascer com cromossomas XY em vez de XX?
A que intelecto e logica Deus estaria a apelar e evocar ao propor uma estrutura hierarquica que não é sustentavel para a perpetuidade do proprio homem, uma vez que se levada a ultimas consequencias o exterminio de especies vegetais e animais- que nao precisa ser sequer de 50%, implica a deprivação de meios de sobrevivência do protegido?

Não, não creio que Deus tenha qualquer intuito nem de exercer dominio- porque senão não teriamos livre arbitrio, nem subjugação- ou seriamos todos compelidos a adoração dum tirano (que é precisa e tristemente o que tantos veneram, ora com olho numa recompensa celestial ora com medo dum castigo e vazio eterno).

Despido de dogmas, vazio de presunções proféticas, sem graça especial ou inteligência reconhecivel, eu no nada que sou olho para as estrelas, para o mar, para uma flor, para os olhos de um cão, para o espelho... e sinto de forma quase visceral que há uma ordem e um caos, uma rutura e uma reconstrução, constante, auto alimentada, equilibrada, da qual posso ser ou apenas uma pequena parte ou- na hora mais nobre e tentativa mais digna da minha vida, ser um mordomo, um guardião. Não como administrador capataz, mas como guardião, amigo, protector não sendo eu superior ou mais forte mas ainda assim determinado e, acredito, mandatado, a ser de utilidade á continuidade da existencia das especies que compoem toda esta maravilhosa Criação.

Poucos capitulos adentro ainda no Gênesis, há o episodio conhecido de Caim e Abel. Depois do incidente infeliz, Moisés continua a parábola mistica colocando Deus a falar com Caim e lhe perguntando "Onde esta o teu irmão", ao que Caim responde "Serei eu o guardador de meu irmão?"
Por fábulas, parábolas, histórias, mitos, por episodeos tantos cuja acuidade historica não é tao relevante quanto o principio que tentam ensinar- vemos varias vezes duma ou outra forma esta indagação: Seremos os guardadores de nossos irmãos? E quem são esses irmãos?

Para mim, na pequena esfera de conhecimento que alcanço neste vaso de barro quebradiço, entalado entre paradoxos hormonais e existenciais que não entendo nem muito menos domino, toda a forma viva é extensão e manifestação de Deus e de todas sou , somos, guardadores.Se não guardamos, amamos e preservamos o que luminoso, belo e inocente há ante os nossos olhos aqui e agora, com que veleidade dizemos acreditar e amar a uma Divindade cuja "carne" nao conhecemos e cuja mente, coração e designios são tão profundos, vastos e inefavelmente incompreensiveis para a nossa limitada pessoa? Quem não vê Deus na criatura, não viu Deus de todo; quem não amou o semelhante que vê e toca e cheira, como se atreve a dizer que ama o que empiricamente não pode comprovar?

Dominando e subjugando estaremos apenas assinando e carimbando o passaporte da nossa propria extinção, e desonra, enquanto individuos e enquanto espécie.
A Terra e a Criaçao como um todo, incluindo nossos pares humanos, não são posse a dominar , nem suas mentes territorio a ocupar; não são nossos os rios que neles nem habitamos para que os poluamos ate que não mais saciem a nossa propria sede sequer; não é nosso o céu em que so conseguimos voar por engenhos mecanicos para que possamos impunemente o saturar com infectas nuvens de gases até que asfixiemos.

Por principio lógico, por compaixão co-existencialista, por sobrevivência propria e do todo, por veneração ou pelo que seja, espero que percamos rapidamente as noçoes antropo centristas que teem dominado a nossa cultura nos ultimos 3000 anos e que nos estão a levar a um ponto de não retorno.
Sejamos o jardineiro e guardador da existencia, crescimento, equilibrio e felicidade de nós mesmos, de nossos "irmãos e irmãs" e de toda a coisa e criatura criada- ou  seremos despedidos todos de toda e qualquer tarefa porque o mundo ira a bancarrota existencial, falirá e ruinas, pó e ecos serão tudo o que restará da espécie que podia ser tanto mas escolheu não ser mais.

Sem comentários:

Enviar um comentário