sábado, 8 de março de 2014

Dia da Mulher (singular)



     Pouco antes da 1ªGuerra Mundial, em Agosto de 1910, Luise Zietz, uma alemã propôs a criação de um dia  chamado "Dia da Mulher". Vivia-se na crista da onda da indignaçao social e da luta pelos direitos básicos.
     Não estamos a falar de direitos que hoje consideramos básicos que então nem se falavam, mas dos precursores de tratar cada pessoa como alguém válido, único, portador duma voz que deve ser ouvida seja que aparência ou proveniência tenha. Numa multidão vestida de indignação justa há sempre sentimentos muito fortes de rejeição, de injustiça, de sensação de querer gritar à luz o que alma geme na escuridão a que uma sociedade preconceituosa a vetou.
     Ameio a tal- como hoje- havia quem temesse a "tirania das minorias". Isto é, em essência, o medo que a maioria (que nem sempre é numérica mas simplesmente a classe dominante- a que tem poder e voz) fosse depois esmagada e forçada a viver com os principios dos que estão em minoria- seja numérica ou estatutária.este é um dos medos presentes quando se lutou e ainda se luta pela igualdade das classes, das etnias,as idades (sim, idades ou alguém consegue olhar para os lares de idosos cheios, o despedimento dos mais velhos e a sua incontratabilidade e sinceramente acreditar que não há preconceito com gente com mais de 40?),de orientação sexual,de religião (do direito a acreditar no que se quer - seja numa divindade ou em si mesmo e numa ciência empírica,de ideologia e claro de género.
     Mas no inicio do século não eram as mulheres, enquanto massa de gente, que acordava, não eram as mulheres que enquanto multidão sem rosto buscava voz. Era "A" Mulher, enquanto individuo, enquanto alma, enquanto voz própria, personalidade, carne e sangue, sentimento e raciocinio que queria ser olhada e vista,ouvida e escutada. Não porque é mulher mas porque é Ser Humano, porque existe, porque está aqui à nossa frente , contribui no todo - sempre o fez, mas era tida como um adereço, um incómodo, uma ferramenta, uma extraviada da Criação.
     A Idade das Trevas foi apenas o culminar duma longa caminhada de homens a falar em nome de religiões patriarcais monoteistas adoradores de uma divindade masculina que nas primeiras palavras à humanidade aparentemente faz questão de apontar a virtude e pureza do homem e a vergonha, fraqueza e raiz de todo o sofrimento encarnados numa mulher. Sempre achei- tendo sido educado numa vertente protestante do cristianismo, irónico, que as palavras de Gênesis deem tanto a entender esse ponto de vista quanto o do contrário. As palavras só dizem que se Eva não tomasse do fruto não conheceria o Bem e (em algumas versões "do") Mal e que a Humanidade não existiria. A meu ver, Adão foi conformista, receoso e obediente à letra da lei ignorando o seu espirito já dizia Paulo, a letra mata mas o espirito vivifica).
     A Biblia nao diz para nao tomar o fruto; diz que não devem tomar SE quiserem lá permanecer (e por inerência negar a existência corpórea da humanidade inteira) e não crescer e aprender o Bem e o Mal e entre estes, com conhecimento de causa, fazer uma escolha educada. Eva, por isto, para mim, é nesta história/parábola a verdadeira heroína, o motor de arranque desta viagem cheia  de vales escuros e planicies douradas a que chamamos Vida.

     Desde os estatutos de Moisés, o primeiro a escrever o que viria  a ser conhecido como Antigo Testamento (base para as religiões abraâmicas- israelismo/judaismo, cristianismo e islãmismo) que se começa a tentar inculcar a inferioridade espiritual, emocional e intelectual da Mulher e o  enaltecer do Homem enquanto possuidor da Terra, profeta das leis, reflexo divino. Aqui e ali a própria Biblia mostra que houve sacerdotisas, profetisas, rainhas que determinaram a propria sobrevivência de Israel enquanto povo - muitos autores, muitos pontos de vista. Mas nesta amálgama o que sobressai e o que os interpretadores da casta sacerdotal sempre cada vez mais ricos e influentes no plano político realçam é o Homem e ou ignoram ou caluniam a Mulher.

     Cerca de 3500 anos de lavagem cerebral cultural levaram-nos aquele clima de silêncio, de abuso emocional, de desdém pela Mulher enquanto individuo. Não havia o conceito aceite e respeitado de "A" Mulher, mas se via apenas mulheres, essa multidão amorfa, sem rosto, individualidade  ou voz ou paixões que compõe metade da Humanidade.
     Até a  Carta dos Direitos Humanos é ainda traduzido para a maioria das linguas como Direitos do Homem e não Direitos da Humanidade.Essas primeiras lutas pelo direito de voto, de divórcio e protecção de homens autoritários e violentos, pelo direito de controlar o seu corpo sem penas de prisão, pelo direito do trabalho (nao falamos férias ou limite máximo horário mas simplesmente o direito a ocupar-se, a trabalhar, a fazer ver que se pode fazer as mesmas tarefas e bem), pelo direito a propriedade (se uma mulher ficasse viuva ficava sem casa e sem rendimentos), não podiam se educar senão em colegios estupidificantes que as preparavam para casar e reproduzir (o que em si não é mau se não fosse por obrigação e por inferência de que isso era a a sua unica e maior capacidade).
     Há cerca de 100 anos e hoje, não é uma massa amorfa de mulheres que luta , é A Mulher, a pessoa. È a minha Mãe que luta para ser ouvida e respeitada , é a minha amiga que quer estudar Economia e outra que quer um dia gerir o seu próprio bar ou outra que quer chegar a Directora do departamento de formação na  empresa- sem que a isso sejam impelidas nem proibidas.
     Esta é a luta por ter e fazer ouvir uma voz, uma voz de cada vez, uma mente, um sonho, uma ambição. Não proponho que se metam mulheres em cargos de chefia ou nas universidades só para cumprir numeros- isso é um insulto imenso, é dizer que se não for pela mão dos homens elas não chegam lá por mérito.

     Anseio por um dia em que um cargo de liderança esteja vago literalmente para quem melhor qualificado esteja- seja homem ou mulher, branco ou não, judeu, islamita, whatever.
    Não irei dizer que todas as mulheres são nobres de carácter, boas lideres (embora por acaso em todas as entidades patronais que tive as mulheres foram em muito mas mesmo muito, melhor que seus antecessores e sucessores homens), aplicadas estudantes, etc. Não é acerca disto que se luta. Luta-se pela igualdade de oportunidade. Somos diferentes? Claro que sim e ainda bem que sim. Primeiro se fossemos iguais o mundo era bem mais cinza e triste- e claro o pequeno detalhe de em 1 geração a Humanidade desaparecer LOL.

     Mas é como com qualquer outra luta pela igualdade. Não luto para que homens de baixa estatura a ficar carecas dominem o mundo ou sejam mais bem vistos- sim falo de mim HAHAHA, luto para que olhem para mim enquanto pessoa, capaz de sucesso tanto quanto fracasso, fazer-me valer pelas minhas escolhas sem que detalhes não relevantes ao ponto me descartem ou me enalteçam imerecidamente.

     A luta é pela Mulher ser vista como não uma mulher, mas um Ser Humano capaz, independente, único mas igual de potencial entre seus pares, respeitada nas suas particularidades, ouvida nas suas ambições, não promovida nem rebaixada só porque é Mulher, não colocada num pedestal de cristal como se fora o premio de alguém nem posta nos bastidores. Enquanto parte duma relativa minoria numa outra maneira, tenho lutado para não ser nem barrado de progresso nem tratado com "pena" arrogante; só quero que me vejam , que me ouçam , que obviamente me ensinem e critiquem e que me recompensem pelas minhas lutas e esforços quando forem dignos e eficazes. Quero não ser invisivel nem uma mancha.

     Esta é a minha visão (falivel, incompleta e imperfeita como eu sou)da luta pela Mulher, que é a luta de todos, para que não seja mais vista como objecto, como escape ou prémio pelo ego e emoções enfraquecidos de alguns homens, para que seja vista como pessoa, Humano com direito a paixões, erros, sensualidade (se um homem tem sexo com muitas é viril, uma mulher tem dois homens- mesmo que não ao mesmo tempo, é já é ...bem, a palavra "P"; até mesmo pelo ponto de vista de algumas mulheres- ah, quao eficaz a ironia e  hipocrisia condescendente patriarcal- ainda que não de todos os homens).

     A Mulher é tão intrincada , complicada, simples, bela, feia, eficiente ou não, boa aluna ou não, mais ou menos "casta", melhor ou pior legisladora ou regente que qualquer homem. Luta-se também, de mulher para mulher, contra a ideia de que só uma mulher solteira e trabalhadora é que é independente e intelectual e as que escolhem, ou a isso são impelidas pela vida, ser Mães a tempo inteiro são unica e exclusivamente subservientes ou fracas. O que importa é que a Mulher seja ouvida, que tenha o mesmo direito que o homem a seguir as suas justas ambições e a ser por isso respeitada- não levada ao colo nem barrada, apenas respeitada porque não é um animal amestrado nem uma sombra ignorável. É um Ser Humano e deve poder crescer, florescer, dar fruto e por isso e só pelos seus frutos ser vista e avaliada- pelos homens, por outras mulheres, pela sociedade e suas leis, por si mesma.Que nas nossas mentes, no nosso coração, na nossa lógica, na nossa memória, nos nossos trabalhos e andanças, no dia a dia- e não apenas em datas especificas, seja sempre um bom dia para lutar pela Igualdade.

     Não vamos celebrar o Dia da Mulher para amanha  ouvir o vizinho a bater na namorada e encolher ombros, ou para chegar ao trabalho e ouvir um "chefe" dizer que jamais terá uma mulher como seu par porque não é coisa de mulheres. Não se luta num dia; luta-se vivendo, pondo em pratica os principios, prevenindo, tendo coragem para enfrentar os opressores, proteger as vitimas, tratar as nossas Mães, irmãs, sobrinhas, patroas, amigas, colegas de casa, não com pena ou condescendencia, nem com abuso fisico ou emocional (e ha palavras que doem tanto mais que um estalo) mas com respeito e equidade, com Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

     Viva a Mulher, Viva a Humanidade, Viva a Vida.

p.s.- conselho de leitura interessante, divertido e que, creio, se adequa ao tema, "Diário de Adão e Eva", de Mark Twain.
p.p.s.- a ultima foto no arranjo acima, no canto inferior direito, é a minha Avó e a minha Mãe, em Coimbra, 1953 :)

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